COVID19 e Esquizofrenia
Por: Prof. Dr. Ary Gadelha
A Pandemia por COVID19 não é uma entidade única. São várias em uma só e atinge as pessoas de modo e em tempos diferentes. Mesmo assim, podemos afirmar que os mais vulneráveis são suas principais vítimas. A Pandemia não deu origem às desigualdades, mas aprofundou as já existentes.
Nesse contexto, as pessoas com transtornos mentais graves, como a esquizofrenia e o transtorno bipolar podem ser especialmente atingidas. O Programa de Esquizofrenia da EPM/UNIFESP (PROESQ) é um serviço acadêmico de pesquisa e assistência para pessoas com esquizofrenia e suas famílias. Desde o início da Pandemia recebemos inúmeras dúvidas de mães preocupadas com os seus filhos. Uma grande parte das perguntas no momento inicial eram sobre a clozapina, um antipsicótico de segunda geração, que pode induzir agranulocitose. Já que a medicação pode levar a redução da resposta imune, seria o caso de a suspender? Não, não seria, pois o risco de imunossupressão é baixíssimo e a interrupção da clozapina, única medicação superior para casos de esquizofrenia resistente ao tratamento, seria um risco muito maior. Reunimos as dúvidas recebidas, fizemos uma revisão abrangente da literatura disponível da época e publicamos um trabalho no Brazilian Journal of Psychiatry delineando os possíveis riscos e recomendações. Como o objetivo era responder a um público mais geral, esse artigo serviu de referência para dois cards informativos, voltados para pacientes, familiares e profissionais de saúde não-especializados. O material foi elaborado em conjunto com pesquisadores do Brazilian Consortium for Schizophrenia Research (BRACS) e divulgados gratuitamente em mídias sociais. Posteriormente, uma versão revisada de um dos cards foi divulgada em Portugal.
A Pandemia atingiu a todos duramente, impondo mudanças na rotina e nos afastando de amigos e pessoas mais próximas. As incertezas amplificaram a ansiedade. Entender o impacto da Pandemia na saúde mental da população se tornou necessário, visando desenvolver estratégias de prevenção. Fomos convidados então a participar de uma colaboração internacional extensa, com mais de 200 pesquisadores de 30 países diferentes, o Collaborative Outcomes study on Health and Functioning during Infection Times (COH-FIT). No Brasil, somos 4 pesquisadores principais – Profa. Samira Valvassori (UNESC), Prof. André Brunoni (USP-SP), Prof. Ary Gadelha (EPM/UNIFESP) e Prof. Felipe Schuch (UFSM). Até o momento foram 160mil questionários respondidos no mundo inteiro, mais de 7 mil no Brasil. A grande força do estudo é usar um mesmo questionário em todos os países envolvidos, melhorando a comparabilidade dos efeitos entre países e culturas diferentes. Foram publicados dois estudos detalhando os procedimentos e trazendo um descritivo da população que completou a entrevista (adultos e crianças/adolescentes). Estamos no momento analisando os dados brasileiros a fim de entender o efeito de variáveis sócio-economicas na resposta emocional à Pandemia. Essas análises estão sendo conduzidas pela Dra. Carolina Ziebold, bolsista do Programa Jovens Talentos do CAPES-PRINT UNIFESP.
Em paralelo ao processo para implantar o COH-FIT no Brasil, identificamos duas situações relacionadas à esquizofrenia e quadros psicóticos. Começaram a chegar pacientes em crise psicótica ao pronto-socorro com conteúdos relacionadas à COVID19. Além disso, tivemos pacientes e familiares contaminados com SARS-COV2 e um caso de óbito. Qual seria a relação desses eventos com a pandemia? Qual o seu significado? Organizamos rapidamente projetos a serem submetidos na ética e começar uma coleta de dados de prontuário. É importante destacar que o senso de urgência e escassez de recursos não permitiram desenvolver estudos com amostras representativas. Por outro lado, é importante também salientar que a duração e a falta de perspectiva de um fim próximo da pandemia, exigem estudos rápidos e o acúmulo de dados para permitir uma compreensão mais ampla de suas consequências. Em todo o caso, uma análise crítica é fundamental, compreendendo as limitações e qual a síntese possível dos dados disponíveis.
Esses esforços resultaram inicialmente numa série de casos em que identificamos 12 pacientes em crise psicótico atendidos no Pronto-Socorro do Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental, uma das principais emergências psiquiátricas de São Paulo, coordenado por uma parceria entre a EPM/UNIFESP e SPDM. Revisando os casos, identificamos dois padrões distintos de crises psicóticas. Pacientes que apresentaram um primeiro episódio psicótico, normalmente casos mais leves, autolimitados e possivelmente associados a eventos estressantes. O outro grupo é de pacientes que já apresentavam um diagnóstico prévio, como esquizofrenia e transtorno bipolar, e que tiveram uma recaída. Essas trajetórias podem ter implicações distintas para o tratamento, sendo que a primeira tende a ser mais autolimitada.
A outra iniciativa foi entender se as preocupações sobre maior risco de contaminação e mortalidade se justificariam. Revisamos os dados de 199 pacientes com esquizofrenia do ambulatório, do período de março a agosto de 2020. Os dados geraram um artigo que está atualmente submetido. Identificamos uma taxa de contaminação por COVID maior que a média da população brasileira no período. Ocorreu um óbito, o que devido ao pequeno tamanho amostral não nos permite uma conclusão definitiva. A questão revelada por esse conjunto de dados é o não-reconhecimento dos pacientes com transtornos mentais graves como uma população mais vulnerável e sua consequente inclusão na lista de prioridades para vacinação.
A Pandemia por COVID19 são muitas em uma só. E cada um de nós foi atingido de modo diferente em um momento distinto. Essa multiplicidade de trajetórias torna complexa a interpretação dos dados e exige ponderação. Os transtornos mentais podem ser uma das principais consequências da pandemia e das mais duradouras. Os traumas podem ser transmitidos ao longo de gerações. Para pessoas mais vulneráveis como as que vivem com esquizofrenia, pode haver um risco aumentado para COVID19. De modo independente, as mudanças de rotina e a maior dificuldade de acesso aos serviços de saúde podem levar a um maior risco de recaídas psicóticas. Essas recaídas podem ter graves consequências pessoais e funcionais. Cuidar dos mais vulneráveis é necessário para reduzir as desigualdades. Investigar o impacto da pandemia, gerar dados e os analisar criticamente será fundamental para cuidar melhor de quem precisa mais e nos preparar para futuras pandemias.
Por: Prof. Dr. Ary Gadelha |