O cirurgião e a pandemia de COVID-19

A pandemia de COVID-19, declarada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em março de 2020, surpreendeu a todos. Isso porque, ninguém vivo hoje havia presenciado um problema de saúde com tamanho impacto global. A globalização nunca esteve tão presente em nossa sociedade, em nossas atividades cotidianas, dentro de nossas famílias. É verdade que a pandemia trouxe inúmeros impactos negativos, observemos o dashboard atual da OMS, onde o Brasil consta na faixa de países com o maior número de óbitos decorrentes da COVID-19/100k habitantes (https://covid19.who.int/).

Esse impacto não diferiu no cenário cirúrgico, onde boa parte das cirurgias eletivas foram postergadas, em todos os serviços, de maneira global. Nota-se que cirurgias eletivas canceladas significam desde as estéticas minimamente invasivas até as cirurgias de revascularização carotídea para evitar um infarto cerebral ou as para remoção de cânceres, por exemplo.

Mas nem tudo foi lamento. Muito pelo contrário. Houve um movimento, também global, para a colaboração, nunca visto, de modo a responder às perguntas mais urgentes, como essas:

● Como manejar os pacientes cirúrgicos no cenário da pandemia?
● Qual o melhor momento para se indicar uma cirurgia após uma infecção por COVID-19?
● Será que se usarmos os tratamentos habituais, como os anticoagulantes para tromboembolismo venoso, teríamos alguma vantagem no manejo da COVID-19?

Um grupo de cirurgiões, incluindo a Vascular da Escola Paulista de Medicina (EPM), iniciou uma colaboração realmente global de modo a contribuir com o maior número de dados e com a maior representatividade externa possível. Essa colaboração resultou na COVIDSurg Collaboration e na GlobalSurg Collaboration para coletar, analisar e divulgar dados de desfechos relevantes de pacientes cirúrgicos de todo o mundo no momento em que mais precisávamos de respostas, na pandemia de COVID-19.

Com o desenvolvimento das vacinas contra o vírus SARS-CoV-2 em tempo recorde mas em número ainda menor que o necessário para toda a população, nos vimos frente ao conflito de quem seria a prioridade para iniciar a vacinação e qual seria o melhor modelo para os pacientes que precisam se expor em ambiente hospitalar para um procedimento cirúrgico. A vacinação pré-operatória contra SARS-CoV-2 poderia apoiar cirurgias eletivas mais seguras. Entretanto, os números de vacinas são limitados, portanto, este estudo teve como objetivo informar sua priorização por modelagem. A colaboração toda envolveu dados de 141.582 pacientes de 1.667 hospitais em 116 países em todos os continentes. Após os critérios de inclusão e exclusão, os dados de 56.589 pacientes foram incluídos nas principais análises para essa modelagem de vacinação.

O desfecho primário foi o número necessário para vacinar (NNV) para prevenir uma morte relacionada ao COVID-19 em 1 ano. NNVs foram mais favoráveis ​​em pacientes cirúrgicos do que na população geral. Os NNVs mais favoráveis ​​foram em pacientes com 70 anos ou mais que necessitam de cirurgia oncológica (351; melhor caso 196, pior caso 816) ou cirurgia não oncológica (733; melhor caso 407, pior caso 1664). Ambos excederam o NNV na população geral (1840; melhor caso 1196, pior caso 3066). Os NNVs para pacientes cirúrgicos permaneceram favoráveis ​​em uma variedade de taxas de incidência de SARS-CoV-2 na modelagem de análise de sensibilidade.

Globalmente, priorizar a vacinação pré-operatória de pacientes que precisam de cirurgia eletiva à frente da população em geral poderia evitar mais 58.687 (melhor caso 115.007, pior caso 20.177) mortes relacionadas ao COVID-19 em 1 ano. Assim, concluímos que à medida que a vacinação global contra SARS-CoV-2 avança, os pacientes que precisam de cirurgia eletiva deveriam ser priorizados frente à população em geral (https://doi.org/10.1093/bjs/znab101).

É sabido que a infecção perioperatória por SARS-CoV-2 aumenta a mortalidade pós-operatória em 10 vezes. Mas até quando devemos postergar uma cirurgia a fim de evitar uma morte por COVID-19 e ao mesmo tempo não aumentar o risco do atraso pelo problema de saúde de base do paciente? A COVIDSurg Collaboration / GlobalSurg Collaboration buscou determinar a duração ideal do atraso planejado antes da cirurgia em pacientes que tiveram infecção por SARS-CoV-2. Este estudo de coorte prospectivo, multicêntrico e internacional incluiu mais de 140 mil pacientes, de 116 países, submetidos a cirurgia eletiva ou de emergência em outubro de 2020. Pacientes cirúrgicos com infecção pré-operatória por SARS-CoV-2 foram comparados com aqueles sem infecção prévia por SARS-CoV-2 e a cirurgia realizada ≥ 7 semanas após o diagnóstico de SARS-CoV-2 foi associada a um risco de mortalidade semelhante à linha de base (odds ratio (95% CI) 1,5 (0,9-2,1)).

Após um atraso ≥ 7 semanas na realização da cirurgia após a infecção por SARS-CoV-2, os pacientes com sintomas contínuos tiveram uma mortalidade maior do que os pacientes cujos sintomas foram resolvidos ou que foram assintomáticos (6,0% (IC 95% 3,2-8,7) vs. 2,4 % (IC 95% 1,4-3,4) vs. 1,3% (IC 95% 0,6-2,0), respectivamente). A partir desse estudo, temos que sempre que possível, a cirurgia deve ser adiada por pelo menos 7 semanas após a infecção por SARS-CoV-2. Pacientes com sintomas contínuos ≥ 7 semanas após o diagnóstico podem se beneficiar de um atraso adicional. Esse estudo já conta com 123 citações e mudou a prática diária das cirurgias frente à COVID-19 (https://doi.org/10.1111/anae.15458). Esse trabalho da COVIDSurg Collaboration / GlobalSurg Collaboration foi incluído no Guinness book, como o artigo que envolveu o maior número de co-autores (15.025) publicado em revista científica com revisão por pares (“https://www.guinnessworldrecords.com/world-records/653537-most-authors-on-a-single-peer-reviewed-academic-paper”).

A COVID-19 normalmente afeta os pulmões e as vias aéreas; entretanto, além de problemas respiratórios, cerca de 16% das pessoas hospitalizadas com COVID-19 manifestaram problemas nos vasos sanguíneos, levando à formação de coágulos de sangue nas artérias, veias e pulmões. Quase metade das pessoas com COVID-19 na forma grave da doença internadas nas unidades de terapia intensiva desenvolvem coágulos em suas veias ou artérias. Os anticoagulantes são medicamentos que impedem a formação de coágulos de sangue (trombose venosa profunda). Entretanto, eles podem causar efeitos indesejados, tais como sangramento. Algumas diretrizes recomendam a administração de anticoagulantes assim que a pessoa é internada no hospital pela COVID-19 para evitar o desenvolvimento dos coágulos de sangue em vez de esperar a formação destes coágulos e só posteriormente, tratá-los com anticoagulantes.

Apenas vacinar ou escolher o melhor momento para operar nossos pacientes parecia pouco e fomos levados a tentar decidir o que de melhor poderíamos fazer, não só como cirurgiões, mas como médicos. Queríamos saber se o uso de anticoagulantes em pessoas hospitalizadas com COVID-19, como uma medida preventiva, reduziria o número de mortes em comparação com pessoas que não receberam nenhum tratamento ou aquelas que receberam um tratamento placebo (um tratamento idêntico mas sem ingrediente ativo). Em colaboração com pesquisadores da Cochrane Brasil, Cochrane Austrália e da Universidade de Beirute (Líbano), a Vascular EPM desenvolveu uma revisão sistemática rápida em tempo recorde para tentar responder essas perguntas.

Procuramos por estudos que testaram o uso de anticoagulantes em pessoas internadas pela COVID-19 para prevenir a formação de coágulos sanguíneos. Na última versão, incluímos sete estudos com 16.185 pessoas hospitalizadas com COVID-19 em unidades de terapia intensiva, enfermarias ou departamentos de emergência. Concluímos que os anticoagulantes em altas doses resultam em pouca ou nenhuma diferença na taxa de mortalidade e aumentam o risco de sangramento menor em comparação com os anticoagulantes em baixas doses para as pessoas hospitalizadas com COVID-19. Entretanto, a administração de anticoagulantes, comparado a não usar anticoagulantes, pode reduzir a taxa de mortalidade.

Estudos de alta qualidade ainda são necessários para analisar a necessidade de suporte ventilatório adicional, o uso ou não de anticoagulantes, a comparação entre diferentes anticoagulantes e o uso de anticoagulantes por períodos prolongados. Entretanto, é muito provável que novos estudos não mudem as evidências sobre os efeitos de diferentes doses de anticoagulantes sobre a taxa de mortalidade e sangramentos menores, pois nossos dados de alta certeza foram decisivos. A primeira versão dessa revisão Cochrane foi publicada em outubro de 2020 e a mais recente em março de 2022. A fim de disseminar essas evidências, esses dados foram traduzidos para várias línguas, inclusive o Português e está disponível também em podcasts (https://doi.org/10.1002/14651858.CD013739.pub2).

Até há pouco tempo atrás, ninguém poderia imaginar que passaríamos por um desafio realmente global, que afeta ainda hoje a rotina de todos, a pandemia de COVID-19. Porém, momentos de crise são oportunidades de melhoria. E os profissionais de saúde, incluindo os cirurgiões e a EPM, têm se mostrado muito competentes em responder às demandas globais e contribuir para algumas respostas frente a esses desafios. Espero, como todos nós, que essa pandemia se encerre o quanto antes, mas que esse espírito colaborativo persista entre nós.

 

Prof. Dr. Ronald Flumignan, MD, MBA, PhD
Professor adjunto livre-docente e vice-chefe
Disciplina de Cirurgia Vascular e Endovascular da
Escola Paulista de Medicina