Tempo e espaço em novo amálgama

Por: Prof. Dr. Reinaldo Salomão

Quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias, a que se deu o nome de ano, foi um indivíduo genial. Industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão” (Atribuído a Roberto Pompeu, em busca de dados bibliográficos)

Ainda que seja real – vamos desejar Feliz Ano Novo, vamos fazer balanço do ano que finda – o momento que vivemos desafia a métrica de tempo e as relações de espaço, como o lugar de vida e de fala a que nos acostumamos.

Em momentos extremos, o tempo e o espaço têm outra dimensão, como o tempo de uma guerra e a fronteira movediça entre os países. Certamente, nosso tempo e espaço são os tempos e os espaços da pandemia de COVID-19, dure o tempo que ela durar, ocupe o espaço que ocupar. É nesse contexto que refazemos o que queremos chamar de cotidiano, buscamos um norte, uma motivação e, ousadia, um pouco e até mesmo muita felicidade. No trabalho, reorganização e uma nova disciplina; nas relações, uma nova dinâmica e modo de querer; na alma, bem aí é bem mais complicado.

No prefácio do livro “Infectologia – Bases Clínicas e Tratamento”, de 2017, escrevemos “Novos patógenos emergem a todo o momento e o impacto de cada nova doença passa a ser respondido em tempo real. Outros patógenos, outrora causadores de grandes epidemias, rondam nossas lacunas de desenvolvimento científico e social apresentando recrudescência, doenças emergentes e reemergentes estão sempre no horizonte”. Essa história vai se repetir e é preciso aprender com o presente, aprender a preservar a sensatez e coibir os delírios na construção da resposta em tempo real.

Estou me distanciando irremediavelmente do propósito de escrever sobre o papel do CoEPE no HSP, nossos balanços e desafios. Fica para a próxima.

Aprendemos muito, mas o que acertamos e erramos enquanto médicos, profissionais de saúde e cidadãos, só saberemos quando o distanciamento nos trouxer a serenidade necessária para julgar. Mas já se pode antecipar, há muito a lamentar e muito a celebrar. Isso é verdade.

A pandemia aflorou em uma época estranha, rancorosa, dividida, agravada por políticos que a representam, trazendo muros e armas, eleitos por nós. Se já seria difícil com boas lideranças, com as que se alinham com o negacionismo foi pior ainda. Quantas vidas a má condução da pandemia custaram? Mas o presidente não criou o negacionismo, apenas se alinhou a ele e, triste, encontrou respaldo ou silêncio em muitos cenários onde a indignação deveria ter sido a tônica. O gabinete das sombras (que nome!) é revelador dessa interação perniciosa. A distorção da verdade tem mais força que a mentira, exatamente porque é mais dissimulada e difícil de ser revelada e combatida. Dois princípios tão caros a nós, médicos, a intervenção precoce e a autonomia do médico para tomar decisão baseada na avaliação criteriosa do paciente, foram usados como sofisma, com a anuência de nosso conselho (CFM). Deram respaldo ao achismo, curandeirismo, estrelato da hipocrisia, emprestaram credibilidade ao que não merecia crédito e ofereceram ao paciente e à comunidade a ilusão da segurança. Um dia, nós nos perguntaremos como isso foi possível, ou pior, futuras gerações nos perguntarão, como isso foi possível.

Muitos de nós fomos vozes vencidas em grupos de whatsapp de família, turmas de formatura, de trabalho, entre outros. Isso reflete o estado de espírito que tomou conta de nós, como sociedade, diante da ameaça e logo da triste realidade da pandemia, e a opção de muitos, possivelmente a maioria em alguns momentos, foi pela cura milagrosa, pela esperança vazia. O amplo espectro de manifestações clínicas da doença, incluindo de assintomáticos e “gripezinhas” às mortes nas UTIs, foi o cenário propício para todos corroborarem suas convicções. Distorcerem também conforme a conveniência. Como personagens de Saramago, viam a luz e não se perceberam cegos.

De outro lado, que orgulho do que fomos capazes, como sociedade, pesquisadores, médicos, profissionais de saúde. Que orgulho de ser HSP, EPM, EPE e Unifesp. Quantas imagens de profissionais cansados, marcados pela aspereza das máscaras, pelo isolamento, pelo cuidado que salvou e pelo esforço, muitas vezes ainda maior, que não salvou. Imagens de pacientes recebendo alta nos corredores dos hospitais, sob aplausos da equipe, devolvendo a essa todo o brilho e ânimo para continuar na jornada. E pesquisadores se debruçando na bancada para entender o vírus e como ele causa a doença, e nesse processo descobrir alvos terapêuticos. A ciência e a medicina brasileira foram pródigas na produção de conhecimento, trabalharam em rede, estabeleceram colaborações, quebraram barreiras.  Artigos foram publicados em grande número em revistas de primeira linha nas múltiplas possibilidades de investigação. A ciência brasileira ofereceu ferramentas para a compreensão da doença e para a elaboração de políticas públicas. O SUS mostrou-se fundamental para o Brasil.

Saímos mais fortes, não tenho dúvidas. A razão, a ciência, a boa prática da medicina, a importância da multidisciplinaridade, a solidariedade e a empatia saíram fortalecidas. Perdemos o Manoel Girão, símbolo maior de todo esforço de nossa comunidade, e a ele rendemos homenagens.

Voltemos ao tempo, estamos em dezembro, vale sim renovar as esperanças, tão próximas da exaustão. Esperança do verbo esperançar de Paulo Freire.  Sejamos realistas esperançosos*, como nos inspira Ariano Suassuna.

Prof. Dr. Reinaldo Salomão

 

Texto do Paulo Freire

É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar; porque tem gente que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo…

Texto De Ariano Suassuna

O otimista é um tolo. O pessimista, um chato. Bom mesmo é ser um realista esperançoso.

 

*A Sociedade Brasileira de Oncologia, regional nordeste, conferiu recentemente o prêmio “realista esperançoso” para a pesquisadora Leuridan C. Torres, do Hospital de Câncer de Pernambuco (HCP) e do Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (IMIP) de Recife, instituições parceiras do Dinter da Medicina Translacional, coordenado pela Profa. Dulce Casarini (EPM/Unifesp)